São Paulo e a guerra das ciclovias

Sempre admirei os cicloativistas de São Paulo. Aliás, sempre admirei qualquer um que tivesse nervos de aço para se locomover de bicicleta nesta cidade. Insisti algumas vezes em cobrir distâncias pequenas por ruas menores e sempre terminei estressado e com a sensação de que qualquer coisa sem motor não é bem-vinda nas ruas. Certa vez quase terminei atropelado na Alameda Santos, aquela mesma, que dizem ser a alternativa à Avenida Paulista para bicicletas.

Pois diferente de mim, outros insistiram em cortar a cidade pedalando. Gritaram e pediram às autoridades providências para tornar São Paulo uma cidade amigável às bicicletas, até que finalmente a prefeitura decide pôr em prática um plano ousado: criar 400 quilômetros de vias exclusivas em um ano e meio. Para uma metrópole com pouco mais de 60 KM de ciclovias, seria um feito e tanto.

E começou a transformação. Ruas amanheceram vermelhas e com elas vieram os protestos de motoristas que, presos no engarrafamento, são obrigados a ver as pistas vermelhas livres ao seu lado. Insanidade de uma prefeitura que não quer enxergar o óbvio erro?

O ciclismo já é um modal de transporte em diversas cidades do mundo e isso não é segredo para ninguém. Amsterdã, Copenhague e diversas outras priorizam pesadamente as bicicletas a ponto de gerar notícias quase cômicas, como o “engarrafamento de bikes”. Mas as críticas ao plano cicloviário de São Paulo fazem questão de frisar que não estamos na Europa, onde há respeito às regras de trânsito, transporte de qualidade, boa infraestrutura e condições mais amigáveis – além de menores distâncias – que favorecem ao ciclismo. São Paulo é composta de ladeiras, o Brasil um país tropical e pedalar até o trabalho é um idílico sonho hippie que não faz parte da cultura paulistana. Mais ainda, a situação já está caótica, como então reduzir ainda mais o espaço para os carros? Talvez, um pouco de informação e uma mudança de perspectiva ajudem a elucidar o problema.

“São Paulo não é a Europa”

Não, mas nada impede que tenha o mesmo padrão de vida ou melhor. Aliás é até bom que não seja a Europa em alguns aspectos. Aqui não neva, não há escassez de luz solar e a única interpérie é a chuva. Copenhague, paraíso ciclístico, tem neve de dezembro à abril, chuvas de julho à setembro e não mais que duas horas de luz solar entre outubro e fevereiro. A única vantagem é que de maio à agosto o dia segue até às 22h.

Ou seja, nossas condições climáticas não são tão problemáticas assim. Se o povo de lá se dispõe a pedalar na neve com temperaturas abaixo de -10º, não vejo porque em uma cidade com temperatura média de 23º não pode fazer o mesmo. É mais complicado no verão? Sem dúvida, mas convenhamos que São Paulo não é exatamente a cidade mais quente do Brasil. E o verão Europeu também é quente.

Se for uma questão de mentalidade, deixo aqui um vídeo mostrando que Amsterdã não se tornou uma cidade tão amigável às bicicletas por vocação divina. Foi uma luta, como a que enfrentamos atualmente, que fez com que o poder público redefinisse as prioridades em relação ao planejamento urbano.

Não está convencido? Os parisienses também não estavam. A cidade que hoje conta com 440 KM de ciclovias e pretende expandir esse número para 700 KM, passou pela mesma controvérsia em 2009 quando começou a pintar o chão e dar um chega pra lá nos carros. Os argumentos eram parecidos: “pra quê ciclovias se ninguém vai usar”? Demorou, mas a cidade é reconhecida pela malha cicloviária e pelo Velib, talvez o melhor programa de aluguel de bicicletas do mundo.

“Já não há espaço para carros”

Verdade, não há. Nem nunca vai haver. São Paulo possui uma frota de mais de 7 milhões de veículos particulares, e isso é mais do que a população do Rio de Janeiro. Nunca vai haver infraestrutura suficiente para socar tantos carros. Não há duplicação que resolva, não há empilhamento de minhocões que vá dar alívio ao trânsito da cidade. Tomemos como exemplo Los Angeles, EUA. A cidade possui mais de 33 mil quilômetros de ruas, algumas vias expressas com 12 pistas e ainda assim enfrenta os maiores índices de congestionamento do país. Há uma lógica nisso. Quanto mais incentivo para um determinado modal, mais ele será usado e no caso do carro, que ocupa muito espaço e em geral transporta poucos passageiros, a infraestrutura entra em colapso facilmente.

A prefeitura de São Paulo em seu plano mirabolante, decidiu retirar vagas de estacionamento para fazer as ciclofaixas e somente em alguns casos comprometeu faixas de rolagem, mas ainda assim a percepção é negativa, afinal carros precisam ser estacionados em algum lugar. É essa lógica perversa que cria o conflito. O espaço público precisa ser dividido entre modais de maneira justa e apenas 2% dos 17 mil quilômetros de vias estão sendo dados às bicicletas e a maior parte faixas que não locomovem ninguém. Essa redivisão faz justiça com as pessoas que segundo a pesquisa de 2012 do metrô, se locomovem todos os dias em bicicleta, totalizando 333 mil viagens. Comparativamente, somentte 158 mil viagens de táxi foram registradas pela pesquisa, mas as vagas para táxi abundam em detrimento de ciclovias. Sem contar aqui as pessoas que não utilizam a bicicleta – como eu – pela falta de infraestrutura dedicada para tal. Não existe nenhuma “perda de direito conquistado”, somente garantia de que mais pessoas terão acesso ao mesmo direito.

“Em São Paulo as distâncias são longas”

É verdade, em partes. Os empregos em São Paulo estão concentrados principalmente no Centro, região da Av. Paulista e Faria Lima. Por ter se desenvolvido de maneira radial, a cidade cresceu ao redor de seu Centro, se expandindo por todas as direções de maneira concêntrica. O que significa que as regiões ao redor das zonas de emprego ficam a distâncias relativamente curtas (até 10 KM) o que no mapa representa a seguinte área.

Ou seja, levando-se em conta uma velocidade média para ciclismo de transporte em uma cidade com cruzamentos, sinais de trânsito, elevações, etc, é possível facilmente obter uma média de 16 KM/h, número considerado padrão pela ONG Transporte Ativo. Para quem vive dentro desse círculo a viagem de bicicleta é perfeitamente possível. E não levamos em conta outras viagens rotineiras como escolas e universidades que não estão concentradas no Centro e cuja demanda pode ser suprida por bicicletas, aliviando a infraestrutura viária e de transportes coletivos.

“Quero ver o pessoal que vive na Zona Leste pedalar até o Centro”, alguns podem dizer. Realmente é improvável e dificilmente acontecerá, a não ser no caso de alguns entusiastas do pedal. Mas não significa que a bicicleta não tenha utilidade como modal de transportes. Vamos a um exemplo nacional para matar de vez o complexo de vira-lata.

No Rio de Janeiro a Zona Oeste (em verde) da cidade está afastada do Centro (vermelho)por distâncias de até 60 quilômetros. Já a Zona Sul (amarelo), onde estão Ipanema e Leblon, tem fartura de ciclovias e estão bem mais próximas. Ainda assim a maior parte dos deslocamentos em duas rodas ocorre na região mais afastada. Como explicar?

Nos bairros mais afastados, utiliza-se a bicicleta para chegar às estações de trem, normalmente nas regiões centrais dos bairros, longe das residências. Logo, um trajeto de 3 kilômetros pode ser vencido em 15 minutos de bicicleta, economizando a espera (e o dinheiro) que seria gasto em um ônibus. E engana-se quem pensa que seria mais rápido em carro. Com a facilidade de acesso aos automóveis, os bairros da Zona Oeste agora contam com sua própria hora do rush e engarrafamentos incríveis. A mesma jornada que antes levava 10 minutos de ônibus 20 anos atrás agora pode levar uma hora. O bairro de Santa Cruz, no limite oeste do município, tem 20% dos deslocamentos feitos de bicicleta, a estação Inhoaíba sofre com a falta de espaço para bikes, mesmo possuindo 100 vagas para tal. Portanto esqueça as lindas vias com vista para o mar, é na zona mais pobre da cidade onde as bicicletas são fundamentais para fazer a meia-distância, como chamamos o percurso entre a origem e o transporte principal.

A profusão de bicicletas nas passarelas da Avenida Ayrton Senna dá à Zona Oeste ares de Amsterdam – Foto: Roberta Machado para o Viva Favela

Tudo isso para mostrar o papel que a bicicleta pode desempenhar na melhoria  da mobilidade de quem mora nas regiões afastadas. Até mesmo em São Paulo já há um bom indicador, o bicicletário do Largo da Batata, vizinho à estação Faria Lima do metrô. Recentemente instalado, aumentou o número de bicicletas na ciclovia em 37%. Ou seja, pessoas vão até a estação e de lá seguem viagem.

“São Paulo não é uma cidade plana e ninguém quer chegar suado ao trabalho”

Roma também não é plana. Pior, foi construída em cima de sete montes, um inferno de ladeiras, mas a cidade teve suas ruas fechadas recentemente e uma série de rotas ciclísticas foram criadas gerando uma explosão de bicicletas. Os romanos argumentavam que jamais daria certo ali, devido à natureza vaidosa do italiano. Deu certo.

Falando em calor, São Paulo não é nenhum paraíso tropical, como mencionado antes, ainda que fique bem quente no verão. Mas convenhamos, se no Rio se pedala tanto, o que impede os paulistanos de fazerem o mesmo? Não é a temperatura. E não, os cariocas não dão um mergulho no mar entre a pedalada e o trabalho.

Bicicletário no inverno em Milão. Convenhamos, São Paulo é um passeio no parque comparado a isso.

Bicicleta não é transporte de massa”

É verdade, mas carros também não são e ainda assim receberam a maior parte dos investimentos em infraestrutura nos últimos 50 anos. A bicicleta serve como meio de transporte auxiliar (embora os holandeses discordem desta afirmação), reduzindo a pressão sobre a já saturada malha viária e infraestrutura de transportes públicos. Além da jornada casa-trabalho existem uma série de outras viagens que demandam locomoção. Bairros residenciais, normalmente com vias mais estreitas e de baixa velocidade se beneficiariam de uma alternativa que permitisse aos estudantes acessarem escolas e universidades com segurança sem demandar mais veículos transitando nem o caos das portas das escolas em horários de entrada e saída. A ideia não é resolver todos os problemas de mobilidade com pistas vermelhas, mas oferecer mais uma opção de modal, nesse caso com baixo investimento e aproveitando a estrutura existente e muitas vezes morta, como são as vagas de estacionamento.

Também observe que investimentos não são excludentes. Precisamos das ciclovias, assim como precisamos de mais metrô, mais faixas de ônibus – embora alguns também reclamem  delas – mais trens, mais tudo. Inclusive de mais planejamento que descentralize os empregos, aproximando trabalhador, comércio e trabalho. O que não precisamos é mais carros, isso já temos o suficiente.

“Ciclovias prejudicam o comércio”

O argumento é que sem vagas de estacionamento as pessoas não tem como parar seus carros para consumir. Estranho. Sempre achei a tarefa de olhar vitrines de dentro de um veículo em movimento sem prejudicar o trânsito, um tanto impraticável. Observar o comércio exige deslocamentos flexíveis, de baixa velocidade e com possibilidade de parada imediata, ou seja, a pé. Ou de bicicleta. O ciclista que passa em frente à sua loja é um comprador em potencial, caro comerciante, o motorista não. Claro que imediatamente os lojistas vão estranhar, nos Estados Unidos eles fizeram o mesmo. Só que agora perceberam que estão vendendo mais. Muito mais.

“Eu não quero andar de bicicleta e ponto final”

Tudo bem é seu direito, ninguém quer te obrigar a fazê-lo, mas por favor não se manifeste contra o direito de quem quer se locomover de outra forma. A pesquisa da CET já demonstrou o tamanho da demanda reprimida de bicicletas, pra não falar dos ciclistas audaciosos (os que eu mencionei lá no começo) que compõem essa massa de mais de 300 mil viagens por dia. Mas quando quiser tentar, a ciclovia estará logo ali.

São Paulo está finalmente dando um passo ousado e fazendo uma experimentação sem precedentes. Criar ciclovias não é algo novo, mas com tanta extensão em tão pouco tempo, é bastante radical. Mas precisa ser assim. Projetos como esse demoram anos a sair do papel – quando saem. E ciclovias para serem úteis precisam estar interligadas, formando uma rede. Colocar uma pista aqui e ali não gera impacto, apesar de trazer um aumento no número de ciclistas daquela região, mas é preciso ir além.

A mudança de paradigma também vem aos poucos. Lembra-se de quando ninguém usava cinto de segurança? Em um ano poderemos ter uma percepção bem melhor do impacto das ciclovias em São Paulo, dando exemplo para o resto do mundo. Porque não há nada que impeça nossas cidades de se tornarem tão boas de se viver quanto às de qualquer outro país.

Mas se você é morador de algum bairro que não aguenta a ideia de ter metrô ou ciclovias à sua disposição, não tem problema. Nova Iorquinoscanadenses e bogotanos também eram assim. Não há mudanças sem controvérsia e você só está seguindo o roteiro. Mas com o tempo você se acostuma.


Imagem do topo via: Henrique Alex