Sobre gentrificação, urbanismo e a pobreza de pensamento

Se você vive em qualquer grande cidade brasileira, já deve ter visto algum programa de revitalização da cidade para áreas “degradadas”. Quase sempre os programas “Novo (a)_____(insira aqui o nome do bairro da sua cidade)”, começa com um anúncio entusiasmado do poder público, um vídeo em 3D mostrando como a região ficará bonita, pedestres andando tranquilamente, comércio, prédios reformados e pintados, tudo uma beleza. O que não aparece nas belas imagens é o destino da população que já vive no local e que após toda essa revitalização, com certeza não poderá pagar o aluguel do seu apartamento.

Os projetos de revitalização normalmente acontecem em áreas centrais, perto de bairros nobres ou do próprio centro de negócios da cidade que se tornam abandonados com o tempo, mas ainda concentram grande parte dos empregos do município. Após décadas de ocupação irregular e degradação urbana, os preços caem e só mora ali quem aguenta o tranco de viver em áreas carentes de serviços e com muita violência. Projetos como esse raramente acontecem em bairros isolados onde a população sofre com falta de transporte e saneamento, gerando deslocamentos gigantescos e espaço para atividades ilegais se proliferarem rapidamente.

Após a limpeza urbanística realizada pelas prefeituras e o estímulo a novos empreendimentos comerciais e residenciais por troco de pinga, temos uma situação dramática. A classe média se sente atraída, os preços sobrem e a especulação expulsa os antigos moradores que já não podem mais suportar o valor do aluguel, IPTU e custo dos serviços da região. O jeito é sair pra uma daquelas regiões isoladas e esquecidas por Deus, que mencionei no parágrafo anterior. Isso amigos, é a gentrificação[1] em sua forma mais pura e tirana possível. Uma assepsia social não forçada, que “limpa” a pobreza expulsando-a através das leis de mercado. Tudo legalmente e sem nenhuma remoção ou desapropriação.

Mas porque isso acontece? Pior, porque o processo quase nunca encontra obstáculos? É que além da venda do espaço público para os interesses privados, existe uma gigante camada da população que está de acordo com isso. Com os preços dos aluguéis tocando a estratosfera e a deficiência de transporte público em todo o país, todo mundo acaba desejando seu lugar ao sol essa chance de comprar um apartamento bem localizado fica bastante tentadora. Nesse momento, qualquer consciência social cai por terra e o que sobra é uma classe média reacionária que deseja comprar seu apartamento, mas em momento nenhum querendo dividir um espaço com quem ganha 5 vezes menos. Egoísmo pouco é bobagem. Nem vou citar o caso das empresas que se aproveitam dessa manobra para construir shoppings e escritórios na cabeça de quem estiver no caminho. Esses nunca se importaram com desenvolvimento sustentável mesmo.

Enquanto a gentrificação é um fenômeno bastante estudado lá fora, aqui onde o abismo social é do tamanho do Grand Canyon, para muitos o enobrecimento urbano parece uma excelente política de segurança pública e desenvolvimento social. Só que não estamos falando de construir uma cidade em um deserto, existem pessoas naquele lugar! Não é “desenvolvimento” se não contempla o bem-estar de toda ou da maior parte da população envolvida. E construir um pombal a 50 quilômetros de distância não ajuda em nada a amenizar o problema.

Atualmente, vivemos uma transição no modelo de planejamento urbano global, onde várias metrópoles redefinem seus caminhos a seguir graças à saturação do modelo de povoamento contemporâneo (um Centro com “anéis” em torno dele, sendo a área mais pobre – a periferia – a área mais afastada). Já descobrimos que transporte de massa ajuda, mas não resolve o problema, e que após uma certa distância fica impossível amenizar a perda de tempo em deslocamentos. Pensando nisso, as prefeituras deveriam fazer suas revitalizações em conjunto com programas de habitação para pessoas de baixa renda, garantindo que a ocupação urbana ocorra de maneira a contemplar todas as classes sociais e não leiloar o território para as construtoras erguerem ilhas residenciais para quem puder pagar. Taí o Bairro do Recife e o Pelourinho que não me deixam mentir (apesar que esse último não foi tão bem-sucedido).

Quando pesquisava os parâmetros adotados pela prefeitura do Rio para o programa “Porto Maravilha”, achei um fórum de discussões que contava com engenheiros, urbanistas e alguns curiosos que eram massivamente a favor da estratégia de aburguesamento da região, defendendo que houvesse sim um programa habitacional, mas que não beneficiasse a classe A, mas sim famílias com salários entre 6 e 8 mil reais (!!!) e que poderiam financiar um imóvel “não tão caro”, apenas R$450 mil (preço mais baixo). Parem tudo que eu quero descer.

Dentre várias opiniões absurdas colhi esta aqui por ser a mais longa e explícita sobre os motivos do apoio à gentrificação (todas as partes destacadas foram feitas pelo  próprio autor).

 Classe baixa tem na cidade toda, não precisa de mais um recanto além dos locais na própria Zona Portuária onde já está, e classe alta nem vai ter interesse lá.

Quem precisa morar bem e próximo ao trabalho é a classe média. Para os que não têm condições financeiras de morar próximo ao trabalho, no Centro, o que acontece em todas as grandes metrópoles do mundo (Tokio, Paris, NY, Madrid, etc. etc.) existe a solução mágica de investir em transporte de massa, ao invés do poder público fazer filantropia em áreas de alto valor, e é isso que resolve o problema de mobilidade urbana, pois a Zona Portuária não tem condições de absorver todos que têm problemas de mobilidade por morarem longe de seu local de trabalho, isso é uma total utopia, e, no caso específico dos cariocas, as favelas estão aí pra quem quiser morar nelas e próximo ao trabalho.

Quanto mais gente de classe média morando na Zona Portuária, melhor. Quem tem que ser fixado lá na Zona Portuária é quem tem condições de valorizar e cuidar de lá, e ricos e pobres não tem interesse nisso. Rico gosta de morar em feudo e pobre não tem tanto cuidado.

Meu choque foi tamanho que tive que assistir a um vídeo de gatinhos para relaxar. Ou seja, para essa sumidade pobre vive em lugar esculhambado porque gosta e não é civilizado o bastante para cuidar. O interessante é que se o enobrecimento tornar o preço elevado demais para o bolso dele aí o cara é contra, afinal a política de habitação não tem que favorecer os ricos (nem os pobres), tem que favorecer ele. Entendi. Se é esse o tipo de pessoa que vai pra rua protestar contra o governo, a mudança não me parece animadora. Espero que a prefeitura do Rio ignore esse tipo de asneira e abrace a oportunidade de reduzir o déficit habitacional atual.

Essa não é uma opinião isolada, ja vi inúmeros comentários como esse em diversos sites, em conversas nas universidades, trabalho e por aí vai. Cansei de ver moradores resmungando contra a mudança de alguma família com cara de humilde para os prédios em que morei e regras de condomínio serem criadas ou alteradas rapidamente caso a mudança de perfil dos moradores fosse muito grande. Já vi um condomínio proibir o uso da área de lazer (que ficava a 300m do prédio) para CHURRASCOS sob a alegação de que a fumaça incomodaria, mas nos corredores sabia-se que era uma tentativa de proibir os supostos “hábitos suburbanos” e evitar que o paraíso “virasse favela”. A tal área era equipada com uma churrasqueira.

Em uma época em que os planejadores urbanos gritam pelo adensamento para evitar grandes deslocamentos e a descentralização para desafogar o trânsito, deveríamos parar para pensar que o melhor que pode acontecer numa cidade é que e infraestrutura alcance a todos e que a diversidade ajude a construir ambientes mais seguros e saudáveis e não a criação de um ambiente estéril e insípido, tudo com cara de casa de bonecas, mas sem nenhuma manifestação cultural.

A cidade só vai ser mais humana quando for planejada para todos os seres humanos.


1.Gentrificação é o processo de “enobrecimento” de um espaço urbano, intencional ou não, que expulsa a população mais pobre -seja por remoção ou especulação imobiliária- substituindo-a por outra com mais poder aquisitivo.